Resumo: O presente artigo analisa a constitucionalidade da restrição contida no § 2º do art. 40 da Lei nº 12.815/2013, de que a contratação pelos operadores portuários de trabalhadores com vínculo empregatício se dará exclusivamente dentre aqueles registrados pelo OGMO. Tal dispositivo parece colidir frontalmente com o direito à livre iniciativa, previsto no art. 1º, inciso IV da CF. Todavia, uma interpretação global da Constituição, assim como da Convenção nº 137, aponta que a leitura literal do dispositivo em questão parece não ser a mais acertada.
Palavras-Chave: Trabalho portuário. Reserva de mercado. Órgão Gestor de Mão de Obra (OGMO). Contratação de trabalhadores portuários com vínculo empregatício por prazo indeterminado.
1. INTRODUÇÃO
O porto – fluvial ou marítimo – consiste em elemento de desenvolvimento e comércio inerente a diversas civilizações, desde a antiguidade. Nessa toada, constata-se que o trabalho portuário está presente nas sociedades humanas desde o aparecimento das cidades, tendo a sua origem intimamente relacionada ao próprio surgimento do trabalho humano[1].
Dadas as peculiaridades da atividade, o trabalho portuário conta com regulamentação específica, inclusive a nível internacional, datando de 1929 a primeira convenção da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre o tema[2].
Atualmente, as principais normas internacionais nessa temática correspondem às Convenções nº 137 e 152 da OIT, as quais tratam, respectivamente, sobre regras gerais ligadas ao trabalho portuário, e sobre segurança e higiene nos trabalhos portuários.
Ambas foram adotadas pelo Brasil[3] e, de acordo com a atual jurisprudência da Suprema Corte, consistem em tratados de direitos humanos com status supralegal[4].
Já no âmbito interno, a normatização das atividades portuárias veio inicialmente com a chamada Lei de Modernização dos Portos, a Lei nº 8.630, de 25 de fevereiro de 1993, já revogada, embora desde 1982 já houvesse singela previsão, na Lei nº 7.002, quanto à autorização de implantação de jornada noturna especial nos portos organizados.
Posteriormente foi editada a Medida Provisória nº 595, de 5 de dezembro de 2012, que pretendeu revogar a Lei nº 8.630, mas cuja constitucionalidade é controversa, considerando não se vislumbrar, in casu, a observância dos requisitos formais de validade inerentes a este tipo legislativo.
De toda sorte, atualmente o trabalho portuário é disciplinado pela Lei nº 9.719, de 27 de novembro de 1998, e pela Lei nº 12.815/2013, de 05 de junho de 2013, intitulada Lei de modernização dos portos, sendo que esta última efetivamente operou a revogação da Lei nº 8.630 e do art. 11 da Lei nº 9.719.
Ainda no ano de 2013 foi editado o Decreto nº 8.033, que regulamentou a Lei nº 12.815/2013, tratando das regras para exploração de portos organizados e instalações portuárias.
Por fim, cite-se que, com base na prerrogativa outorgada pelos arts. 155 e 200 da CLT, foram editadas as Normas Regulamentadoras nº 26, sobre sinalização de segurança, e nº 29, sobre segurança e saúde no trabalho portuário, do atual MTP.
A existência de uma legislação de regência específica para o trabalho portuário se justifica, como dito, pelas peculiaridades inerentes ao setor, o qual envolve grande contingente de mão de obra, em atividades de alta especialização, que, como regra, são desenvolvidas de forma descontínua e por curtos períodos, sem que haja vinculação em caráter permanente entre os trabalhadores e os tomadores de seus serviços, os quais, ademais, são variados.
Tal contexto acentua sobremaneira a vulnerabilidade dos trabalhadores que atuam na atividade portuária, a exigir, efetivamente, um tratamento normativo diferenciado. Some-se a isto o fato de se tratar de atividade estratégica, de latente interesse público.
Nesse passo, no âmbito do trabalho portuário a prestação de serviços é intermediada pelo Órgão Gestor de Mão de Obra (OGMO), responsável por realizar o treinamento e a habilitação do trabalhador portuário avulso, bem como efetivar o cadastro e/ou registro deste, sua escalação, o pagamento de sua remuneração, dentre outros (art. 32 da Lei 12.815/13).
Referida intermediação do OGMO visa garantir uma distribuição das ofertas de trabalho sem discriminação ou privilégios aos trabalhadores avulsos nelas interessados, bem como assegurar que estes últimos recebam o treinamento necessário para desempenho de suas atividades com eficiência e segurança.
Outra especificidade do seguimento refere-se à reserva de mercado instituída pela lei no âmbito dos portos organizados, em relação às atividades de capatazia, estiva, conferência de carga, conserto de carga, bloco e vigilância de embarcações, de modo que só podem ser contratados para tais misteres trabalhadores portuários avulsos cadastrados ou registrados pelo OGMO, ou trabalhadores portuários com vínculo empregatício por prazo indeterminado (art. 40 c/c art. 41 da Lei 12.815/13).
Ademais, há previsão, no §2º do art. 40 da Lei 12.815/13 de que “A contratação de trabalhadores portuários de capatazia, bloco, estiva, conferência de carga, conserto de carga e vigilância de embarcações com vínculo empregatício por prazo indeterminado será feita exclusivamente dentre trabalhadores portuários avulsos registrados” (grifos aditados).
Como se vê, referido dispositivo pretende limitar a contratação de trabalhadores portuários com vínculo empregatício, para que tal ocorra somente dentre aqueles registrados pelo OGMO.
Trata-se, indubitavelmente, de limitação à livre iniciativa preconizada pela Constituição Federal de 1988 como um dos princípios básicos do Estado Democrático de Direito, já que prevista como fundamento da República Federativa do Brasil pelo art. 1º, inciso IV da CF, e repisada como fundamento da ordem econômica e financeira pelo caput do art. 170 da CF.
Assim, questiona-se em que medida as peculiaridades da atividade portuária seriam suficientes para justificar o cerceamento da garantia constitucional à livre iniciativa no que tange aos trabalhos executados nos portos organizados.
É o que se pretende responder com o presente artigo.
2. CONSIDERAÇÕES SOBRE O TRABALHADOR AVULSO PORTUÁRIO E SOBRE A LEI Nº 12.815/2013
O trabalho portuário envolve atividade estratégica, de elevado interesse público, tendo em vista a importância econômica das transações comerciais que perpassam as áreas dos portos e respectivas instalações portuárias.
O porto organizado corresponde a bem público construído e aparelhado para atender a necessidades de navegação, de movimentação de passageiros ou de movimentação e armazenagem de mercadorias, e cujo tráfego e operações portuárias estejam sob jurisdição de autoridade portuária, consoante art. 2º, inciso I da Lei nº 12.815/2013.
Sua exploração é realizada pela União, direta ou indiretamente. A exploração indireta ocorre mediante contratos públicos de concessão ou arrendamento, nos termos do art. 1º, §1º da Lei nº 12.815/2013.
A concessão e arrendamento referem-se sempre a modalidades de exploração da atividade portuária dentro da área do porto organizado. A diferença entre ambas se refere à extensão da área explorada, uma vez que a concessão consiste na cessão onerosa de todo porto organizado (art. 2º, IX da Lei nº 12.815/2013), ao passo que o arrendamento consiste na cessão de apenas uma área e respectiva infraestrutura pública localizada dentro do porto organizado (art. 2º, XI da Lei nº 12.815/2013), ou seja, apenas uma parte do porto.
A atividade portuária pode ser explorada, ainda, em terminais de uso privado (TUP’s), consistentes em instalações portuárias exploradas mediante autorização e localizada fora da área do porto organizado (art. 2º, inciso IV, Lei nº 12.815/2013).
A autorização consiste na outorga de direito à exploração de instalação portuária localizada fora da área do porto organizado, sendo formalizada mediante contrato de adesão (art. 2º, inciso XII da Lei nº 12.815/2013).
Será instituído em cada porto organizado um conselho de autoridade portuária, órgão consultivo da administração do porto (art. 20 da Lei nº 12.815/2013). O regulamento disporá sobre as atribuições, o funcionamento e a composição dos conselhos de autoridade portuária, assegurada a participação de representantes da classe empresarial, dos trabalhadores portuários e do poder público. A representação da classe empresarial e dos trabalhadores no conselho será paritária.
A seu turno, o trabalho realizado nos portos é prestado pelos denominados trabalhadores portuários, podendo estes serem contratados de duas formas distintas: como trabalhadores portuários avulsos (TPA’s) ou como trabalhadores portuários com vínculo empregatício, contratados pela CLT.
Note-se que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 equiparou os direitos laborais dos trabalhadores avulsos e dos trabalhadores com vínculo empregatício permanente, consoante seu art. 7º, XXXIV, in verbis:
“Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
XXXIV - igualdade de direitos entre o trabalhador com vínculo empregatício permanente e o trabalhador avulso”.
A despeito desta equiparação de direitos, tratam-se de trabalhadores com enquadramentos jurídicos diversos.
Destarte, os arts. 2º e 3º da CLT ensinam que o trabalhador com vínculo empregatício se caracteriza como a pessoa física que presta seus serviços com pessoalidade, não eventualidade e onerosidade, sob a direção (subordinação) de empregador, o qual assumirá sozinho os riscos da atividade (alteridade), e como regra, corresponderá à figura daquele em favor de quem os serviços são prestados.
Diversamente, o trabalhador avulso se caracteriza pela descontinuidade na prestação dos serviços; pela curta duração do trabalho prestado; pela pluralidade dos tomadores de serviços a quem se vincula; pela natureza do trabalho ser concernente a evento certo e distinto dos fins normais do empreendimento; e pelo fato de seus serviços serem, em regra, intermediados por uma entidade específica – no caso do trabalhador avulso portuário, esta entidade é o OGMO (Órgão Gestor de Mão de Obra), desde 1993.
Com efeito, a já revogada Lei nº 8.630, de 25 de fevereiro de 1993, denominada de Lei de Modernização dos Portos, teve por legado a criação do órgão Gestor de Mão de Obra (OGMO), retirando das entidades sindicais a gestão da mão de obra do trabalhador portuário, pois havia muitas irregularidades na escalação dos aludidos trabalhadores, com privilégio de alguns em detrimento de outros, especialmente entre sindicalizados e não sindicalizados, o que comprometia também a garantia de liberdade sindical em seu aspecto negativo, prevista no art. 8º, V da CF[5].
Trata-se de aplicação do princípio da distribuição equânime do trabalho, segundo o qual deve-se distribuir sem discriminação ou privilégios os trabalhos oferecidos entre os avulsos interessados.
Ao OGMO incumbe realizar o treinamento e habilitação do trabalhador portuário avulso, bem como efetivar o cadastro e/ou registro deste, sua escalação, o pagamento de sua remuneração, dentre outros.
A Lei nº 12.815/2013, chamada de Lei de modernização dos portos, revogou a Lei nº 8.630/1993, mas manteve a sistemática da intermediação pelo OGMO, bem como da reserva de mercado instituída em favor dos trabalhadores avulsos cadastrados e registrados.
Assim, no âmbito dos portos organizados, só podem ser contratados para as atividades de capatazia, estiva, conferência de carga, conserto de carga, bloco e vigilância de embarcações, trabalhadores portuários com vínculo empregatício por prazo indeterminado ou trabalhadores portuários avulsos cadastrados ou registrados pelo OGMO. Nesse sentido o art. 40 e art. 41 da Lei 12.815/13, confira-se:
Art. 40. O trabalho portuário de capatazia, estiva, conferência de carga, conserto de carga, bloco e vigilância de embarcações, nos portos organizados, será realizado por trabalhadores portuários com vínculo empregatício por prazo indeterminado e por trabalhadores portuários avulsos.
Art. 41. O órgão de gestão de mão de obra:
I - organizará e manterá cadastro de trabalhadores portuários habilitados ao desempenho das atividades referidas no § 1º do art. 40; e
II - organizará e manterá o registro dos trabalhadores portuários avulsos.
Trata-se do princípio da restrição ao trabalho, que impõe que as operadoras portuárias devem se valer dos trabalhadores avulsos para a execução das operações portuárias, não sendo lícito, para tais atividades, contratar trabalhadores de fora do sistema.
A inscrição dos trabalhadores portuários avulsos no cadastro mantido pelo OGMO dependerá exclusivamente de prévia habilitação profissional do trabalhador interessado, mediante treinamento realizado em entidade especializada. A seu turno, o ingresso de tais trabalhadores no registro depende de prévia seleção e inscrição no cadastro retro mencionado, obedecidas a disponibilidade de vagas e a ordem cronológica de inscrição (art. 41, §§1º e 2º da Lei nº 12.815/2013).
Destaque-se que os trabalhadores avulsos podem instituir cooperativa de trabalhadores avulsos (art. 29 da Lei nº 12.815/2013). A cooperativa de trabalhadores avulsos funcionará como uma operadora portuária que concorrerá com as demais operadoras para ser contratada pelos usuários do porto.
No que tange à dinâmica do trabalho nos portos, a Lei nº 12.815/2013 trouxe diversas inovações no tratamento da matéria, sendo a compreensão da realidade de tal setor necessária para a correta mensuração acerca do acerto de tais alterações legislativas.
Dentre as referidas inovações da Lei nº 12.815/2013, merecem destaque as seguintes:
i) Foi prevista a criação de Fórum Permanente (art. 33, § 4º), o qual veio a ser regulamentado pelo Decreto nº 8.033/2013;
ii) Foi mencionada a necessidade de garantia de renda mínima (art. 43), a ser instituída pela via da negociação coletiva, tal como já preconizado pela Convenção nº 137 da OIT, em seu item 2.2. Referida garantia é de suma importância, tendo em vista o processo de automação enfrentado pelo setor, assim como a sazonalidade do trabalho e o caráter alimentar dos salários;
iii) O art. 73 introduziu na Lei nº 9.719/98 o art. 10-A, trazendo a garantia de benefício assistencial mensal de até um salário-mínimo aos trabalhadores portuários avulsos com mais de 60 anos que não possuam meios para prover sua subsistência e que não conseguirem cumprir os requisitos para aposentadoria por invalidez, idade, tempo de serviço ou aposentadoria especial;
iv) A aposentadoria não funciona mais como hipótese de cancelamento do registro ou cadastro (art. 41, § 3º);
v) Diferentemente do permissivo que havia sob a égide da Lei nº 8.630/1993, não há mais a previsão de exploração da atividade portuária na modalidade de uso privativo dentro do porto organizado, mas apenas fora dos limites do porto, nos denominados “Terminais de Uso Privado”;
vi) Por outro lado, houve uma liberação para que estas instalações portuárias localizadas fora do Porto Organizado contratem trabalhadores sem a necessidade de requisição de mão-de-obra ao OGMO (art. 44). Assim, terminais operados pela iniciativa privada nos portos organizados e terminais totalmente privados disputarão a movimentação de cargas de forma desigual. A consequência disto é uma tendência de utilização de critérios discriminatórios na escolha dos trabalhadores portuários avulsos (TPA’s) nos referidos Terminais de Uso Privado, já que estes não terão que observar a escalação rodiziária prevalente no sistema regido pelo OGMO. Ademais, será também mais fácil que nestes ambientes sejam impostas remunerações e condições de trabalho mais prejudiciais àquelas praticadas no porto organizado, já que tais fatores serão negociados diretamente com os trabalhadores, os quais estarão despojados de uma representação coletiva e correspondem a uma força de trabalho numerosa e muitas vezes superior à demanda por serviços;
vii) Houve inclusão da capatazia e bloco no rol das atividades submetidas a reserva de mercado (art. 40, § 2º);
viii) Houve expressa previsão acerca da multifuncionalidade dos trabalhadores, a qual será objeto de negociação entre as entidades representativas dos trabalhadores portuários avulsos e dos operadores portuários (art. 43);
ix) Por outro lado, foi previsto que as diferentes fainas desenvolvidas pelos trabalhadores portuários (capatazia, bloco, estiva, conferência de carga, conserto de carga e vigilância de embarcações) configuram categorias diferenciadas, de modo que a negociação coletiva deverá ocorrer com os sindicatos de cada uma dessas categorias, dentro ou fora do porto organizado, independentemente da atividade preponderante do tomador (sindicato horizontal), conforme art. 40, § 4º. Ainda que isso já acontecesse na prática, tal previsão não é positiva para os TPA’s em uma visão macro, tendo em vista que a categorização interna prejudica sobremaneira a multifuncionalidade, característica essencial, em tempos de automação, uma vez que há uma certa tendência de extinção de algumas fainas (como o bloco). Ademais, a existência de diversos sindicatos pulveriza o poder de negociação, de modo a minimizar a busca por melhoria nas condições de trabalho dos portuários;
x) Acrescentou-se a responsabilidade do OGMO pela indenização por acidente de trabalho (art. 33).
Como se vê, a Lei nº 12.815/2013 facilitou a instalação de terminais de uso privado, que são instalações localizadas fora do porto organizado e exploradas mediante autorização, podendo movimentar cargas de terceiro, em franca competição com os portos organizados. E fora do porto organizado passou a ser possível a contratação de trabalhadores sem necessidade de requisição de mão de obra ao OGMO, aos quais não se aplicará o regime da Lei nº 12.815, que garante direitos aos portuários (como adicional de risco, conforme OJ 402 do TST), sendo a mão de obra mais barata.
Assim, para os usuários dos serviços portuários é mais barato contratar fora do porto organizado, pois neste o regime é de concessão de serviço público e incidem regras rígidas trabalhistas no sistema gerido pelo OGMO. Ademais, fora do porto organizado os salários são menores e os riscos de acidente de trabalho aumentam, em face da fiscalização e treinamento serem mais precários.
Noutro giro, a determinação de que as diferentes fainas constituem categorias profissionais diferenciadas (art. 40, §1º), independentemente da atividade preponderante do tomador (sindicato horizontal), também é inovação da Lei nº 12.815/2013 passível de críticas, pois tem por efeito reduzir a representatividade dos portuários, pulverizando o poder de negociação e enfraquecendo seu poder de pressão por melhores condições de trabalho. Com isso, os trabalhadores avulsos portuários cadastrados e registrados no OGMO acabam perdendo oportunidades de trabalho, ao passo que, uma vez fora do OGMO, terão dificuldade de se reinserir no mercado, pois foram treinados para funções específicas, constituindo categoria profissional diferenciada.
Ademais, isso acaba por esvaziar uma inovação positiva trazida pela lei, concernente a implementação da multifuncionalidade (art. 43), característica essencial diante das oscilações nas demandas de cada atividade, e importantíssima em tempos de automação, em que, como visto, há uma certa tendência de extinção de algumas fainas, como o bloco.
Isto demonstra a necessidade de analisar criticamente as disposições legais constantes da Lei nº 12.815/2013, não podendo as peculiaridades da atividade portuária servir de escusa para precarização do trabalho desenvolvido neste seguimento.
3. CONTRATAÇÃO DE TRABALHADORES PORTUÁRIOS POR PRAZO INDETERMINADO
O §2º do art. 40 da Lei 12.815/13 estabelece que “A contratação de trabalhadores portuários de capatazia, bloco, estiva, conferência de carga, conserto de carga e vigilância de embarcações com vínculo empregatício por prazo indeterminado será feita exclusivamente dentre trabalhadores portuários avulsos registrados”.
Assim, à primeira vista, o dispositivo em questão imporia uma restrição insuperável na contratação de trabalhadores com vínculo empregatício, ao estabelecer que isto se dará exclusivamente dentre aqueles registrados pelo OGMO.
Como visto, podem ser registrados os trabalhadores portuários avulsos que passaram por prévia seleção e inscrição no cadastro mantido pelo OGMO, obedecidas a disponibilidade de vagas e a ordem cronológica de inscrição (art. 41, § 2º da Lei nº 12.815/2013).
Desse modo, a restrição quanto a contratação de trabalhadores com vínculo empregatício exclusivamente dentre trabalhadores portuários avulsos registrados consiste, indubitavelmente, em limitação à livre iniciativa preconizada pela Constituição Federal de 1988 como um dos princípios básicos do Estado Democrático de Direito, já que prevista como fundamento da República Federativa do Brasil pelo art. 1º, inciso IV da CF, e repisada como fundamento da ordem econômica e financeira pelo caput do art. 170 da CF.
Nesse passo, em uma primeira leitura, a restrição em questão se mostraria inconstitucional, por ferir de morte a garantia constitucional à livre iniciativa.
Todavia, uma análise global da Carta Magna, empolgada pelo princípio da unidade da Constituição, evidencia que existem outros valores albergados pelo legislador constituinte que fornecem sustentáculos para a restrição em análise, sobretudo considerando a realidade do trabalho nos portos.
Evoca-se aqui o valor social do trabalho e a dignidade da pessoa humana, também previstos como fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1º, incisos III e IV da CF).
Ora, a lei estipula a reserva de mercado considerando diversos fatores inerentes à atividade portuária, cumprindo destacar, dentre eles: a) a necessidade de treinamento específico para o exercício da atividade portuária, a fim de que seja assegurada a eficiência nos serviços prestados e se evitem acidentes; b) o acesso igualitário às fainas e ternos, através da intermediação do OGMO na seleção em sistema de rodízio de trabalhadores, o que materializa o princípio da distribuição equânime do trabalho; c) a reserva de mercado impede uma precarização das relações de trabalho, ao impedir a oferta indiscriminada de trabalhadores para a mesma atividade, que culminaria na contratação de não-portuários com qualificação aquém do necessário e com remuneração e condições de trabalho abaixo daquelas praticadas entre trabalhadores dentro do sistema; d) o interesse público latente ao redor do serviço nos portos, que consiste em atividade estratégica.
Desse modo, considerando que a reserva de mercado consiste em instrumento destinado a elidir a precarização das atividades portuárias, a limitação quanto a contratação de trabalhadores com vínculo empregatício exclusivamente dentre trabalhadores portuários avulsos registrados mostra-se consentânea com a promoção da dignidade do trabalho portuário, sendo plenamente constitucional.
Nesse sentido, inclusive, julgado da SDI-I do c. TST, de dezembro de 2019:
EMBARGOS INTERPOSTOS NA VIGÊNCIA DA LEI 13.015/2014 – TRABALHADOR PORTUÁRIO – CAPATAZIA - CONTRATAÇÃO COM VÍNCULO DE EMPREGO POR TEMPO INDETERMINADO DE TRABALHADORES NÃO CADASTRADOS OU REGISTRADOS NO OGMO - LEI Nº 12.815/2013 - IMPOSSIBILIDADE
[...]
2. Para as contratações realizadas a partir da vigência da Lei nº 12.815/2013, seu art. 40, § 2º, confere exclusividade aos trabalhadores portuários avulsos registrados nos casos de contratação para os serviços de capatazia, bloco, estiva, conferência e conserto de carga e vigilância de embarcações, com vínculo empregatício por prazo indeterminado.
3. Nesse caso, a interpretação literal é suficiente para entender que a contratação de trabalhadores portuários deve ser realizada apenas dentre aqueles que possuem registro no OGMO. Vale destacar que na redação legal há a palavra "exclusivamente" para delimitar a contratação apenas aos trabalhadores portuários registrados, incluindo expressamente os serviços de capatazia, de modo que qualquer conclusão pela possibilidade de contratar trabalhadores não registrados violaria o significado mínimo do texto objeto da interpretação, que é o ponto de partida do intérprete.
4. A interpretação histórica do art. 40, § 2º, da Lei nº 12.815/2013 indica que a contratação exclusiva de trabalhadores portuários registrados está em sintonia com um cenário de modernização e eficiência, porquanto o OGMO tem em sua essência justamente a busca por essas duas qualidades para o setor portuário.
5. A partir de uma intepretação sistemática, a análise do conjunto normativo da Lei nº 12.815/2013 permite concluir que em nenhum momento o legislador estabeleceu diferença entre capatazia e os demais serviços portuários, havendo tratamento unitário para todos eles. (PROCESSO Nº TST-E-ED-RR-52500-43.2007.5.02.0446, rel. Min. MARIA CRISTINA IRIGOYEN PEDUZZI)
Logo, defende-se aqui a constitucionalidade da restrição trazida pelo § 2º do art. 40 da Lei nº 12.815/2013, por privilegiar os trabalhadores que integram o sistema de trabalho portuário, o qual tem como marca a reserva de mercado, ante às suas peculiaridades.
Nada obstante, é necessário que se faça uma interpretação conforme à Constituição de 1988 e à Convenção nº 137 da OIT do vocábulo “exclusivamente”, versado no dispositivo em questão.
Isto visaria também não infringir o limite dos limites quanto à livre iniciativa, em circunstâncias em que não for viável a contratação de trabalhadores registrados.
Destarte, pode haver situações em que não haja trabalhadores registrados que atendam à convocação do operador portuário para contratação com vínculo de emprego.
Nesses casos, deve-se, primeiramente, investigar o motivo da recusa.
A princípio, a simples inexistência de interessados não deve representar um atentado à livre iniciativa dos operadores portuários, já que tal fato pode estar potencialmente relacionado às condições de emprego atreladas à oferta apresentada.
É dizer, a ausência de interessados face a oferta de contratação mediante vínculo empregatício pode refletir não a inexistência de trabalhadores registrados naquela atividade, mas sim a precariedade das condições de emprego ofertadas, em razão de baixos salários, grande volume de trabalho, jornadas elevadas, etc.
Dessa forma, em princípio, caberia ao empregador melhorar as condições de trabalho ofertadas para tornar o emprego mais atrativo.
Todavia, caso as condições de emprego sejam compatíveis com aquelas praticadas no sistema de trabalho portuário, e, ainda assim, não haja interessados na contratação por vínculo empregatício por prazo indeterminado – dentre registrados ou, sucessivamente, dentre cadastrados no OGMO –, parece coerente sustentar, à luz dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade, que, nestas circunstâncias, e em caráter excepcional, seja permitida que a contratação se efetive em face de trabalhadores portuários alheios ao sistema, mas sempre por intermédio do OGMO e após treinamento concedido por este.
Assim, é preciso adotar uma interpretação sistemática e teleológica, com base no art. 3º, da Convenção 137 da OIT, segundo o qual “os portuários matriculados terão prioridade para a obtenção de trabalho nos portos” (grifos aditados).
Ressalte-se que, de acordo com a atual jurisprudência da Suprema Corte, a Convenção 137 da OIT consiste em tratado de direitos humanos com status supralegal[6], servindo, por isso, como norte interpretativo que deve orientar a interpretação da legislação pátria nesta mesma temática.
Nesse sentido, com vistas a sopesar os ditames constitucionais e convencionais sobre o assunto, o § 2º do art. 40 da Lei nº 12.815/2013 deve ser interpretado como se referindo a uma prioridade, e não exclusividade, da contratação de trabalhadores com vínculo empregatício entre aqueles registrados pelo OGMO.
Nesta toada, em havendo negativa dos avulsos registrados ou cadastrados em atender ao chamado dos operadores portuários interessados em contratar – por intermédio do OGMO – trabalhadores portuários com vínculo de emprego por prazo indeterminado, deve ser permitido ao empregador que faça tal contratação dentre trabalhadores que estejam fora do sistema.
De toda sorte, a contratação deverá sempre observar a média salarial da categoria e poderá ser aceita mediante negociação coletiva.
Nessa linha é a orientação nº 1 da Coordenadoria Nacional do Trabalho Portuário e Aquaviário instituída no âmbito do Ministério Público do Trabalho:
CONTRATAÇÃO. PRAZO INDETERMINADO. Em regra, a contratação por prazo indeterminado de trabalhadores portuários, inclusive de capatazia e bloco, far-se-á entre os TPAs registrados no OGMO. Após exaustivas tratativas e negociações, será possível, excepcionalmente, a contratação de TPAs cadastrados. Em casos excepcionalíssimos, comprovada a ausência de interesse de registrados e cadastrados, poderá haver contratação de trabalhadores externos ao sistema, sempre por intermédio do OGMO e após treinamento pelo OGMO. Em todos os casos, a contratação deverá observar a média salarial da categoria e poderá ser aceita mediante negociação coletiva (ACT/CCT ou termo aditivo).
Ademais, parece ter sido neste sentido a mais recente intelecção adotada pelo c. TST, consoante ementa abaixo transcrita, que corresponde a nova decisão no mesmo processo em que prolatada a ementa já acima transcrita:
“AGRAVO INTERNO. MANUTENÇÃO DE DECISÃO DA VICE-PRESIDÊNCIA. CONCESSÃO DE LIMINAR INAUDITA ALTERA PARTE. EFEITO SUSPENSIVO A RECURSO EXTRAORDINÁRIO. AUTORIZAÇÃO PARA A CONTRATAÇÃO “FORA DO SISTEMA” DE TRABALHADORES PORTUÁRIOS COM VÍNCULO DE EMPREGO COM PRAZO DETERMINADO. PRESENÇA DOS PRESSUPOSTOS PREVISTOS NO ART. 300 DO CPC/2015. O Órgão Especial, por maioria, manteve a decisão da Vice-Presidência na qual concedida liminar, em tutela de urgência, para suspender os efeitos da decisão proferida pela SDI-1 até o julgamento definitivo do recurso extraordinário, autorizando o operador portuário a contratar “fora do sistema" trabalhadores com vínculo de emprego com prazo determinado. No caso, constatou-se que o perigo da demora restou evidenciado pela flagrante lesividade econômica e possibilidade de dano de difícil reparação decorrentes da adoção literal da Lei nº 12.815/2013 quanto à obrigatoriedade de registro para a contratação de trabalhadores portuários, porquanto implicaria na inviabilidade do negócio do operador portuário, já que, no caso de falta de trabalhadores registrados, não haveria como o empregador portuário ter mão de obra para executar sua atividade, caracterizada como serviço público, nos termos do art. 21, XII, “f”, da CF. A probabilidade do direito, por sua vez, decorreu dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, bem como do princípio do livre exercício do trabalho, ofício ou profissão, insculpidos, respectivamente, nos arts. 1º, IV, e 5º, XIII, da CF. Registrou-se ainda que a Lei nº 12.815/2013, em seu art. 40, § 2º, determina de forma expressa a obrigatoriedade de registro apenas para as contratações de trabalhadores portuários com vínculo empregatício por prazo indeterminado, não havendo, portanto, empecilho legal para a contratação de trabalhadores com vínculo por prazo determinado. Desse modo, presentes os pressupostos previstos no art. 300 do CPC/2015, o Órgão Especial, por maioria, conheceu do agravo interno e, no mérito, negou-lhe provimento. Vencidos os Ministros Alberto Bastos Balazeiro, Lelio Bentes Corrêa, Luiz Philippe Vieira de Mello Filho e Amaury Rodrigues Pinto Junior. TST-Ag-ED-E-ED-RR-52500-43.2007.5.02.0446, Órgão Especial, rel. Min. Dora Maria da Costa, julgado em 5/12/2022.” – grifos aditados.
5. CONCLUSÃO
A realidade do trabalho portuário tem particularidades próprias que o individualizam, a exigir uma regência normativa específica, que contemple os princípios orientadores da atividade, notadamente o princípio da distribuição equânime do trabalho e o princípio da restrição ao trabalho.
Nesse passo, a Lei nº 12.815/2013, chamada de Lei de modernização dos portos, dedicou-se a regular o trabalho prestado no setor portuário, sendo, atualmente, o principal instrumento normativo sobre o assunto.
Referido diploma trouxe diversas inovações no tratamento da matéria, sendo a compreensão da realidade do setor portuário necessária para a correta mensuração do acerto de tais alterações legislativas.
Dentre as inovações positivas pode-se citar a necessidade de garantia de renda mínima (art. 43), tal como já preconizado pela Convenção nº 137 da OIT, e a garantia de benefício assistencial mensal de até um salário-mínimo aos trabalhadores portuários avulsos com mais de 60 anos que não possuam meios para prover sua subsistência e que não conseguirem cumprir os requisitos para aposentadoria por invalidez, idade, tempo de serviço ou aposentadoria especial.
Especificamente quanto ao trabalho portuário, cite-se a previsão concernente à multifuncionalidade, a qual consiste em característica essencial diante das oscilações nas demandas de cada atividade, e tem extrema importância diante da automação que arrebata o setor.
Por outro lado, deve ser lida com cautela a previsão legal constante do § 2º do art. 40 da Lei nº 12.815/2013, de que a contratação pelos operadores portuários de trabalhadores com vínculo empregatício se dará exclusivamente dentre aqueles registrados pelo OGMO.
Como visto, há valores consagrados na Constituição da República de 1988 que embasam a restrição trazida pelo aludido § 2º do art. 40 da Lei nº 12.815/2013, como o valor social do trabalho e a dignidade da pessoa humana, previstos como fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1º, incisos III e IV da CF).
Tais valores justificam a opção legislativa de privilegiar os trabalhadores que integram o sistema de trabalho portuário, o qual tem como marca a reserva de mercado, ante às suas peculiaridades.
Entretanto, a restrição de que a contratação de trabalhadores com vínculo empregatício se dê somente dentre aqueles registrados pelo OGMO, deve ser interpretada como se referindo à uma prioridade, e não exclusividade propriamente dita.
Destarte, em situações excepcionais, em que não houver trabalhadores avulsos registrados que atendam à convocação do operador portuário para contratação por vínculo empregatício, e desde que assegurada a média salarial da categoria, necessário que seja permitida que esta contratação se dê em proveito de trabalhadores portuários alheios ao sistema, mas sempre por intermédio do OGMO e após treinamento concedido por este, à luz dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade.
Trata-se de interpretação que concilia as particularidades próprias da atividade portuária com o direito à livre iniciativa previsto no art. 1º, inciso IV da CF, e também erigido à condição de fundamento da República Federativa do Brasil, o que se mostra, ademais, em consonância com o quanto preconizado pela Convenção nº 137 da OIT, que possui status supralegal e deve orientar a interpretação da legislação pátria nesta temática.
[1] PAIXÃO, Cristiano; FLEURY, Ronaldo Curado; MEIRINHO, Augusto Grieco Sant’anna. Direito do Trabalho Portuário. Editora Venturoli, 2022 pág. 11.
[2] Em 1929 foi adotada pela OIT a Convenção nº 28, que entrou em vigor em 01/04/1932, e foi retirada em 2017 por decisão da Conferência Internacional do Trabalho (CIT) em sua 106ª reunião.
[3] Consoante, respectivamente, os Decretos nº 1.574, de 31.6.95 e nº 99.534, de 19.9.90.
[4] RE nº 466.343/SP
[5] Art. 8º É livre a associação profissional ou sindical, observado o seguinte: V - ninguém será obrigado a filiar-se ou a manter-se filiado a sindicato;
[6] RE nº 466.343/SP
Graduada em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e Pós-graduada em Direito Constitucional pela Faculdade Damásio de Jesus. Analista Judiciário no Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MOTA, Gabriela Cavalcanti. Trabalho nos Portos: possibilidade de contratação de trabalhadores portuários fora do sistema Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 maio 2023, 04:49. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos /61379/trabalho-nos-portos-possibilidade-de-contratao-de-trabalhadores-porturios-fora-do-sistema. Acesso em: 28 dez 2024.
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